Colcha de retalhos

Minha mãe, Maria das Dores, é costureira desde que me conheço por gente. Sempre foi uma função paralela, um extra, mas que configura um ofício que ela aprendeu desde muito novinha. Talvez o primeiro, não sei... sei que aprendeu vendo minha avó e outras mulheres da família costurando. Dizia ela que construía bonecas e fazia roupinha para elas e assim ela tinha com o que brincar. Aliás, minha mãe até hoje tem uma paixão muito grande por bonecas de pano e ela continua as confeccionando. 
Não é como se eu nunca tivesse tido vontade de aprender a costurar, mas em algum momento da minha pré adolescencia, a relação começou a ficar bem difícil e nós nem sequer nos suportávamos mais. Uma saturação, incompreensão, falta de propósito para estar junto, apenas obrigação. Aprender algo com ela não fazia o menor sentido, embora nada abalasse o reconhecimento que eu tinha em relação a ela. Uma profissional impecável.
Anos se passaram e eu fui trabalhar com edição de video. Não foi de pronto que estabeleci a conexão, mas em algum momento isso foi se estabelecendo em mim. Parecia tanto com a costura! E eu pensava "até que não consegui fugir muito dessa construção minuciosa, do detalhe". Minha mãe estava ali, inconscientemente sendo uma referência para o meu fazer e eu não demorei muito a reconhecer isso. 
Manifestei, depois de nos aproximarmos um pouco mais, o desejo de aprender a costura e ela dizia que poderia me ensinar. Eu não botava muita fé que ela me ensinaria e, creio eu, ela não botava muita fé que eu queria mesmo aprender. Em uma das visitas em sua casa, a casa onde passei minha infância e parte da adolescência e início da vida adulta, eu vi alguns retalhos cortados e disse que gostava muito de colchas de retalhos. Ela tinha uma e, em nosso contexto, era uma peça bem comum. Ela então disse que faria uma pra mim.
A colcha está em processo de feitura.

Interessante como alguns assuntos ou temas permeiam os meus pensamentos e parecem crescer em um canto escondido do meu quintal, entendendo minha mente como um quintal, daí um belo dia eu saio para explorar um pouco mais esse terreno e lá está ele. Maior, mais nutrido, se mostrando presente. 
Eu estava andando pela Av. Paulista quando as palavras colcha de retalhos vieram à mente. Esse foi o início da sequencia de fatos. Depois, eu olhei para o lado e vi, em uma lona com outros vários livros no chão à venda, um livro com esse título. É um livro de sociologia que eu estendi a mão sedenta para curiar, achando espantosa a coincidência. Comentei com Mariana, que era quem estava me acompanhando na caminhada e, em seguida, mandei uma mensagem para minha mãe. 
Eu, naquele momento, decidi o que queria aprender com ela de costura. Decidi que queria ser um agente que atua diretamente nessa construção e quando voltei lá, em outra visita, foi o que comuniquei decidida. Aí então começamos o aprendizado.
A vida é mesmo curiosa. Menos de uma semana depois da minha visita para a primeira aula de costura, minha mãe foi passar um tempo indeterminado na Paraíba, visitar e cuidar de minha avó que está bem debilitada. Costurei alguns retalhos já cortados, cortamos um molde de camisa, ela me ensinou um tanto sem paciência a fazer viés - eita troço difícil! - e me deu uma tesoura boa. 

Sabe aquela sensação de que existe um mapa do tesouro em sua mão e você está achando pistas super importantes para o tesouro? Nesse caso, o tesouro é o aprendizado compartilhado, a realização de algo tão simples mas que eu não achei que seria possível com o histórico tão delicado que tivemos. É uma aproximação... tudo muito simbólico. Sinto que estou me (re)conectando. 

Como seria projetar nessa superfície? Quais imagens projetar? Quais diálogos meu corpo em movimento pode estabelecer com as imagens projetadas e os tecidos costurados? Quais lugares da memória essa construção ativa em mim?






contei as boas novas pra Raíne, minha irmã costureira que está na Bahia