Ponta Solta: traçando caminho

Esse processo se inicia em um tempo que eu não sei precisar. Faço dessas palavras um exercício de memória, para traçar os caminhos do que se desdobrará nesta ocasião da exposição Caminho - Elã 2024 - como uma instalação composta por vídeo e objeto.

Já fazem anos que encontrei com o Malandro, perto da Uruguaiana, depois de acender um cigarro, no corpo de um vendedor de perfumes que me deu um de presente pra levar pra casa e usar. Era um perfume masculino e um outro feminino que era pra entregar a minha namorada na época. Ele foi enfático, disse que um era pra mim e outro era pra ela. Ele agia como se me conhecesse de longa data.

Caminhei intrigada pra onde estava indo, na curiosidade de ver o papel com o contato dele que ele disse que tinha deixado dentro da embalagem (que parecia aquelas de carne de mercado). Não havia nada ali e aquilo seguiu comigo. Tive outros encontros com ele, uns dentro e outros fora do terreiro. Fiz guia, comprei quadro, caí em golpe de 171, ouvi a risada dele e senti ele caminhar comigo depois de um abraço do Tranca Rua. Sempre presente.

Antes de qualquer coisa, ao me aproximar dos cultos de matrizes africanas, eu vi Exu. Essa Força que me trouxe pra perto, pra dentro, pro corpo. Eu era um tanto reticente ou até mesmo resistente com isso de incorporação, de sentir no corpo algo que não fosse dos comandos da minha consciência até que esse encontro aconteceu. Esse foi o mais emblemático, mas olhando alguns vestígios eu consigo concluir que eu sempre estive caminhando com Exu.

Dia 7 do 7 desse ano eu fui em uma gira. Uma gira basicamente composta por pomba giras, as moças. Fui parar nesse terreiro, o primeiro terreiro onde jogaram búzios para mim e que hoje estou dando início ao meu processo assentando Seu Zé, a convite de uma amiga-irmã. Daniela. Conheci Daniela na faculdade, por acaso, já que naturalmente não nos cruzaríamos já que ela fez farmácia e eu dança. As conversas sobre espiritualidade eram frequentes e mais de uma vez vi Daniela incorporar sua Padilhinha.

Duas semanas antes dessa gira do dia 7, eu sonhei com Daniela incorporada. Como eu sei que ela estava incorporada? Ela estava de laranja (a cor de sua pomba gira) e sorria, apenas sorria, iluminada. A luz da cena era dourada e nós estávamos em uma kombi, eu, ela e o namorado dela que também é meu irmã de axé agora. Disse que havia sonhado com ela numa mensagem e então, finalmente, resolvemos nos encontrar. Estava difícil marcar. Ela disse que essa Gira aconteceria e me convidou para estar presente e eu fui. Era um encaminhamento.

Chegando lá, ao abrir a porta, a primeira figura que vi no meio do salão foi ela. A Padilhinha. Girava e sorria, como no meu sonho. Tive certeza que era esse o lugar onde eu deveria estar. Sabe essa sensação de encaixe? Pois a gira correu e foi mágico e transformador receber o abraço de todas as moças que vieram falar comigo, me saudando, amorosas. A Sete Catacumbas fez pra mim um sinal como se pedisse pra eu guardar segredo de algo, a Sete - pombagira da mãe - me respondeu que eu havia achado o caminho, a Padilhinha me disse que eu precisava trabalhar ali dentro e fora mas que eu só ia conquistar fora se trabalhasse dentro e a Rosinha - pombagira da avó - me disse que eu era Ponta Solta.

“Essa aí é Ponta Solta…” comentou ela pro amigo Rafa, que me acompanhou. Disse olhando pra mim com um sorriso de lado e, desde então, essa expressão não saiu mais de mim. Ela me identificou.

Passei por uma transformação naquele espaço, algo definitivamente aconteceu. Sinto que me desentupi de algo, como uma pia que está com coisas obstruindo a passagem de água. Na semana seguinte, meu gato teve um problema que quase o levou a morte. Eu, por algum acaso ou obsessão artística, comecei a juntar linhas de cerol que eu pegava na rua lá da favela pra fazer algo com elas. Eu ainda não sabia o que. Um belo dia chego em casa e Rema está com um pedaço de linha enfiado na garganta. Era a segunda vez que isso acontecia. Essa linha ele comeu da rua, do telhado, onde sempre ficava um bolo remanescente. Eu cortei a linha e torci pra nada acontecer, mas tudo aconteceu e ele quase morreu. Gastei por volta de 3000 com procedimentos para salvar o gato e hoje ele está vivo e bem, mas… na macumba a gente nunca acha que nada é por acaso.

Muita coisa aconteceu desde aquela gira, desde o susto até o presente, de um contato encomendado pela espiritualidade, um casamento. Fizemos juntas um ritual e resolvemos tirar uma carta de tarô, pra confirmar pomba-gira saiu e a gente viu que só podia ser, porque a gente já sabia que era. Me inscrevi no Elã e passei. Nos foi pedido que relacionássemos nossos trabalhos ao tema que Exu é o corpo e o corpo é o caminho. Algo assim, numa encruzilhada de palavras, que serviam pra saudar essa Força que me ensina todos os dias sobre presença, sobre viver.

Iniciei a capoeira em um grupo chamado Transginga e tem sido especial o que tenho conquistado nesse encontro com outros corpos trans. Nos identificamos. Estou prestes a assentar o meu Zé, Seu Zé Pretinho, nessa mesma casa onde fui abraçada pelas pomba-giras. Ao que tudo indica, sou filha de Oxóssi, da qualidade que come com Omolu, o Rei da minha casa de Axé. Eu abri o portal e sigo trabalhando nessa Força.

Abrir o portal é O caminho e por ele coisas passam, boas e ruins não importa, “Exu é o custo pelo movimento”. Tive uma sequencia de três sonhos que apontam muito para mim esse caminho, um deles foi o de estar na fila de uma cirurgia de mastectomia, prestes a preencher uma ficha de cadastro para realizá-la. O segundo foi com uma pomba-gira, igual a uma representação da figura pelo fotógrafo Vinicius Xavier que vi esses dias procurando referências de trabalhos artísticos; eu a via em um cômodo escuro como no das fotos da série Lebará e disse a ela “com o tempo as pessoas se mostram como são” e quando estava prestes a atacá-la com alguma coisa na minha mão, ela sumia. Eu saia desesperada pela casa procurando e gritava alto em um dado momento, parecia angústia. Depois me virava de costas pra uma parede de tijolos bem parecida com a do banheiro da minha primeira casa antes de qualquer reforma e esperava acordar. Já o terceiro sonho me veio como uma espécie de premonição. Eu sonhei com tortura. Eram três pessoas sendo torturadas e eu olhava aquilo como se estivesse vendo um filme, o mais torturado era um menino bem novo, negro. Tortura pesada, destroçavam ele. No mesmo dia, mais tarde, no caminho do mercado na Zona Sul eu vi um garoto de rua ser rechaçado pelos guardas. No dia seguinte, minha mãe de axé me informou que meu Zé é o Zé Pretinho.

Nada é por acaso e o portal está aberto. Estou lidando com a responsabilidade das minhas escolhas e assim será dia após dia. “Nasci quilombo e cresci favela”, foi uma frase que me surgiu na mente, do enredo da Portela, pra história dessa entidade que passou parte da vida em um Quilombo na Bahia, veio pro Rio de Janeiro e viveu em uma favela. É essa a realidade de quem anda comigo, de quem eu sou e de quem eu quero proteger. Aquele menino anda comigo e eu preciso zelar pela vida dos meus.

Estou agora construindo essa presença fabulada na figura de Ponta Solta, uma entidade que saúda o feminino e o masculino dos corpos, que é o próprio cruzamento em movimento, que se estabelece no mistério do tempo e do espaço de maneira fluida. Ponta Solta é a aparição promotora de contágio, que provoca corpos a seguir em movimento, a se transfigurar. É a entidade da transfiguração. 

 






  
as fotografias e a captação são da Barcelos,
uma grande parceria que esse trabalho ajudou a firmar.